Passados os primeiros momentos de estupor e encantamento, a pergunta: mas como Veneza foi construída? A reação curiosa de quem se depara com os magníficos e robustos palácios históricos que parecem flutuar em uma lagoa é perfeitamente compreensível. Perspicácia? Genialidade? Sorte? Necessidade? Uma mistura de tudo isso.
Veneza é uma ilha? Não exatamente! Na verdade, a cidade é um conjunto de 124 ilhotas que começaram a ser populadas e anexadas umas às outras a partir do século VII. Cada pedacinho da cidade possuía geralmente uma igreja, um campo (a praça) e um poço, e eram as pontes que interligavam uma parte à outra. Diferente do que muita gente pensa, Veneza não é mar e sim uma lagoa separada do mar por pequenas porções de terra.
Veneza tem a curiosa forma de um peixe. O mapa feito com satélite aí em cima mostra a cidade, a estação de trem, o porto, a ponte que a liga ao continente (terraferma) a as ilhas que a circundam. Repare que dentro do peixe tem o que eu chamo de “tripinha” do peixe, que é o Canal Grande.
O Canal Grande tem aproximadamente 4,2 quilômetros e profundidade de 3 a 5 metros. Uma grande ponte liga a ilha até a cidade de Mestre (como alguns dizem Veneza nova, ou Veneza continente). Por ela passam carros, ônibus e o trem. O único lugar em Veneza onde transitam carros é o Piazzale Roma. Se você for de carro, vai ter que deixá-lo em um dos estacionamentos caríssimos desta praça ou no Tronchetto.
A construção de Veneza
Para construir as casas e palácios, os venezianos fincavam troncos de madeira nos pequenos pedaços de terra para que ele ficassem bem sólidos. Em contato com a água salgada e o “caranto”, mistura de areia e argila das camadas mais fundas da lagoa, os troncos ficavam duros como pedra. A partir daí, os construtores colocavam duas camadas de placas de madeira e uma camada de blocos de pedras e tijolos sigilados posteriormente com grandes blocos de pedra de Istria, uma espécie de mármore muito resistente à água salgada e à umidade.
Os palácios venezianos seguiam o formato das conhecidas “casas magazine”, a residência da família mercantil. O térreo era dedicado ao armazenamento das mercadorias e à cozinha. No mezzanino ficavam os escritórios e o andar nobre abrigava o salão ricamente decorado onde as famílias recebiam as visitas e faziam as refeições. No andar superior ficavam seus aposentos, e, no último andar, era onde dormiam os empregados. A fachada mais importante da casa ficava sempre de frente para o canal.
Os estilos dos palácios ao longo dos anos
Os palácios mais antigos são em estilo vêneto-bizantino, como a Ca’ Loredan, construção do século XIII que hoje funciona como sede do município.
O período gótico é muito bem representado por um dos palácios mais famosos de Veneza, a Ca’d’Oro, do século XV. As janelas parecem um bordado.
Os palácios do período renascentista apresentam fachadas em estilo clássico inspiradas na antiga Grécia e em Roma. Um dos exemplos é Ca’Vendramin, onde hoje funciona o cassino de Veneza.
O barroco triunfa no século XVII, com fachadas decoradas por mascheroni com grande efeitos cenográficos como é o caso da Ca’ Rezzonico.
E o sistema de luz, telefone, água…
As margens das ilhas são revestidas com tijolos para que a erosão não “coma” o terreno da cidade. Com o passar dos anos, esses tijolos tornam-se frágeis atacados pela água salgada, pela variação da maré e pelo movimentos dos motores dos barcos. Assim, de tempos em tempos, e é necessário um restauro. A operação não é nada fácil, deve-se fechar e esvaziar o canal para trocar os tijolos danificados.
As ruas de Veneza são cobertas por pedras chamadas trachite e é exatamente debaixo de onde pisamos que está todo o sistema elétrico e hidráulico da cidade. E entre uma ilhota e outra os fios e tubulações também são atravessados pelas pontes. Veneza não possui um sistema de esgoto moderno e utiliza ainda as históricas galerias que levam a água suja aos rios e canais. Duas vezes por dia, a lagoa se esvazia e se enche de água proveniente do mar por três bocas de porto, limpando assim os canais. Em grande parte das construções existem as fossas sépticas, grandes caixas onde ocorre um tratamento da água suja antes que ela seja depositada nos canais.
A vida em Veneza e seus impactos
Desde sua construção, Veneza teve de lidar com as dificuldades de estar posicionada em um ambiente tão insólito. O fenômeno da maré alta, por exemplo, faz parte do quotidiano da cidade nos meses de inverno (leia aqui). Na vida moderna, os impactos no dia a dia não são de se ignorar. O veneziano tem de pensar, por exemplo, no que realmente precisa quando vai ao supermercado fazer uma compra porque ele sabe que vai ter que carregar um carrinho pelas pontes e ruas estreitas. O mesmo vale para o fornecimentos dos bares e restaurantes, tudo chega de barco, por isso as coisas custam mais caro.
O grande desafio hoje é manter Veneza verdadeiramente veneziana. Os custos de manutenção de uma casa, aluguéis e a própria vida na cidade são elevados. Isso tem feito com que muitos moradores se mudem para o continente e Veneza caia nas mãos dos investidores estrangeiros, setor hoteleiro ou endinheirados que compram imóveis na cidade. A cada ano cerca de 2000 habitantes deixam Veneza para morar em outras cidades. Sem contar na quantidade imensa de turistas que passam por ali e também deixam seus impactos.
Veneza luta por um turismo mais sustentável e todo mundo pode fazer sua parte. Quando vier à cidade, privilegie os artesãos locais, não compre por exemplo nas lojas que vendem máscaras e souvenir a baixo preço feitos em grande escala. Não coma em redes de restaurantes como Mc Donald’s (juro que tem gente que faz isso, o Mc fica cheio!), privilegie os restaurantes típicos e se a grana estiver curta, aproveite os petiscos de uma boa osteria. Leia mais aqui. Se utilizar o vaporetto, lembre sempre de tirar a mochila das costas e colocar no chão para não incomodar os outros passageiros.
Alguns venezianos são pouco pacientes com os turistas, mas muitos deles estão sempre disponíveis a dar uma informação, um sorriso resolve tudo. Lembre-se sempre de como essa cidade foi construída e retribua toda a emoção e o encantamento que ela te proporciona com respeito.
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